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Autora Luana Ozemela

Tradução Luana Ozemela

Eu acordei esta manhã para ler uma mensagem recebida de um amigo com o conteúdo de um artigo publicado em uma revista brasileira reconhecida. Como a maioria dos brasileiros negros, inicialmente eu não tive acesso à assinatura paga dessa revista, mas depois consegui acesso para ler o artigo. A mensagem do amigo veio acompanhada de uma foto do mapa dos Estados Unidos, onde se destacavam os estados americanos com protestos em decorrência do assassinato de George Floyd. Cerca de 60% do mapa estava vermelho, evidenciando quão rápido tinham se espalhado dentro de apenas alguns dias após o assassinato.

A mensagem também veio acompanhada de um vídeo, já com a legenda em Português, de uma jovem falando poderosamente sobre o motivo pelo qual as pessoas estavam queimando prédios em Minnesota e no resto dos EUA. Ela falou sobre a doença mental que é o racismo, que se infiltra engenhosamente por todas as partes das instituições Americanas, e que vem assassinando incansavelmente pessoas negras por muitos anos. Ela acrescenta que os saques às lojas e a violência durante os protestos são apenas um reflexo do que tem sido transmitido pelos opressores brancos.

Tendo morado em Washington DC, a capital e o coração da revolta cívica incendiária de quatro dias em 1968 após o assassinato de Martin Luther King Jr.; tendo convivido com comunidades afro-americanas, ativistas e formuladores de políticas nos EUA; e tendo assistido e ouvido o que os americanos assistem e ouvem 24 horas por dia, sete dias da semana na TV, no twitter, no rádio, nas escolas, nas igrejas, nos supermercados, nas barbearias e nos salões de beleza, sinto nos meus próprios ossos a dor, o sofrimento e a indignação pelo assassinato de George Floyd e inúmeros outros assassinatos de homens e mulheres negros/as desarmados nas mãos da polícia nos EUA.

Enquanto eu ainda me perguntava como será que a comunidade negra de DC estará lidando com tudo isso que está acontecendo, comecei a ler o artigo que me foi enviado intitulado “Por que os negros brasileiros não se revoltam como os americanos?”. O autor estava aludindo ao aparente silêncio da comunidade negra brasileira, após as mortes de João Pedro (14 anos), Ágatha Félix (8 anos), Kauê Ribeiro dos Santos (12 anos) e Kauan Rosário (11 anos). Todos mortos pela polícia nos últimos 12 meses no Brasil. O autor começou dizendo que a resposta é simples: “Porque os brasileiros são brasileiros e os americanos são americanos”. Chocante!

Mas o autor logo explica um pouco mais adiante levantando dois pontos importantes de distinção entre os afro-americanos e os negros brasileiros: 1) identidade negra unificada e 2) uma educação afro-centrada, que segundo ele os afro-americanos têm e os negros brasileiros carecem. No entanto, o autor se empolga ao comparar Lauryn Hill a uma cantora popular chamada Anitta, citando que a primeira lançou um dos seus álbuns com a capa inspirada no livro de 1933 de Carter Woodson, “The Miseducation of the Negro”, para de certa maneira comparar a educação e o ativismo afro-americano em relação ao observado no Brasil. Uma comparação imperfeita na minha opinião, porque o ponto de comparação desconsidera os verdadeiros artistas negros brasileiros que usaram sua arte para protestar e expressar seus pontos de vista sobre igualdade racial.

Além disso, o autor deixa de fora de seu texto o legado dos protestos liderados pelo movimento negro brasileiro. Em seu artigo, ele deu crédito a apenas um protesto, a revolta negra indubitavelmente importante chamada “Revolta dos Malês” que aconteceu na Bahia no século 19. Ele chamou atenção ao fato de quem a liderou foram muçulmanos africanos e educados o suficiente para se identificarem como um grupo.

Reuni meus pensamentos para tentar adicionar um pouco mais de contexto, que estava faltando no artigo, talvez devido a limitações no número de palavras às quais, felizmente, não estou necessariamente restringida.

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O primeiro é o fato de os negros no Brasil SEMPRE protestaram. Portanto, dizer ou sugerir que os brasileiros negros são passivos ou apáticos às injustiças e opressões que se repetem por todo o país e ao seu redor é muito impreciso. As décadas de 1970 e 1980 tiveram protestos emblemáticos, como as Marchas Noturnas pela Democracia Racial, que ocorreram em São Paulo por mais de uma década. Alavancadas pelos processos de democratização no Brasil e ampliadas pelas iniciativas do movimento negro que vislumbrava uma nova agenda social, com a igualdade racial em primeiro plano. O protesto implacável contra o racismo, pela cidadania e pela vida, realizado em 20 de novembro de 1995, mobilizou mais de 30 mil pessoas em Brasília, para denunciar a ausência de políticas públicas para a população negra.

E não esqueçamos das marchas das mulheres negras que mobilizam todos anos milhares de mulheres de todo Brasil e de outros países da América Latina, às vezes mais de cinquenta mil (50.000) delas se reúnem para protestar pacificamente em frente ao Palácio do Planalto em prol do acesso à educação, o fim do genocídio da população negra e pela igualdade econômica de raça e gênero.

Sem estrutura ou financiamento para grandes mobilizações, o movimento negro teve que construir alianças amplas e geniosas através de suas entidades de base e outros coletivos organizados para alcançar um grande número de pessoas.

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No entanto, o maior obstáculo ao protesto negro no Brasil sempre foi o mito da democracia racial enraizado na cultura nacional e usado para desmobilizar e deslegitimar o movimento. Portanto, os ativistas negros não estão apenas restritos econômica e politicamente, mas, sobretudo, culturalmente por uma normalidade racista de invisibilidade negra. Apesar dessas barreiras, o movimento negro tem procurado incansavelmente espaços institucionalizados de negociação perante a sociedade e o Estado. As palavras de ordem durante a marcha de 20 de novembro de 1995 foram “Reaja à violência racial!”; “Os negros também querem poder!”; “Palmares! Zumbi! Então eu resisto!”; “Queremos educação, queremos empregos!”; “Zumbi vive, racismo, não!”.

Essas cinco palavras de ordem são provavelmente a melhor maneira de explicar as diferenças e semelhanças entre o protesto afro-americano e o protesto negro brasileiro. Os negros brasileiros carecem de representação econômica, educacional e política, bem como enfrentam racismo, discriminação e extermínio pela polícia e pelo Estado em níveis esmagadores. E, assim como nos EUA, o movimento negro nunca parou.

No entanto, infelizmente, o Brasil retrocedeu e criminaliza os movimentos sociais hoje de uma maneira muito mais perversa, institucionalizando a repressão com novas medidas para reprimir manifestações, acusando criminalmente ativistas detidos e tomando outras decisões judiciais repressivas contra manifestantes e jornalistas e, em alguns casos, aprovação de projetos de lei que restringem o direito de protestar. No Brasil, é incomum que se investiguem abusos e ilegalidades cometidos pela polícia, mesmo em casos de alto perfil, como o da Marielle Franco. De fato, o que vemos hoje são autoridades governamentais de alto nível elogiando ações policiais violentas e juízes que emitem decisões restritivas sobre o direito de protestar, o que perpetua ainda mais o ciclo de violações. Não muito diferente dos EUA atualmente, mas talvez não tão visível.

É verdade que, apesar da lei aprovada em 2003 que obriga o currículo de história da Africa e afro-brasileira nas escolas, as crianças crescem sabendo mais sobre a vida e as letras da Anitta do que sobre o Zumbi dos Palmares, e certamente isso tem um enorme efeito sobre a identidade e a consciência negra. Mas também é verdade que, apesar da tentativa de apagar por completo a história negra e o trabalho acadêmico, os negros brasileiros protestaram e continuam protestando.

A desigualdade racial nos EUA é tão perversa quanto a desigualdade racial no Brasil. A única diferença é o nível em que elas acontecem. A renda familiar per capita afro-americana é 10 vezes maior que a da familia negra brasileira, sem dúvida resultando em diferentes resultados educacionais. De fato, hoje, cerca de 9% dos adultos negros são analfabetos no Brasil.

E hoje ainda, enquanto mais de 70% dos garis e trabalhadoras domésticas são negros, os negros representam menos de 5% dos que estão em cargos executivos das 500 maiores empresas no Brasil.

No entanto, nossa solidariedade negra não tem fronteiras, barreiras linguísticas ou espaço para comparações mesquinhas. Estamos unidos aos nossos irmãos e irmãs afro-americanos na mesma luta anti-racista. Também estamos unidos com nossos irmãos e irmãs no continente africano em nossa luta coletiva de descolonização.

Sei por fato que um conto de fadas sobre a passividade negra tem sido contado sobre nossa luta, nacional e internacionalmente. Internacionalmente, nossa luta não tem foi visibilizada o suficiente pelos próprios negros para que outras comunidades pudessem entendê-la. E nacionalmente, artigos como o que li esta manhã são um desserviço à luta porque influenciam a percepção das pessoas sobre os negros e a força ou fraqueza do movimento negro.

O mundo deve aprender e apreciar a luta implacável pela liberdade, contra o racismo e pela negritude de nossas gigantes mulheres e homens negros no Brasil e, devemos continuar se reerguendo, ocupando espaços de fala e ação online e offline. Juntos somos mais fortes.

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